segunda-feira, 28 de setembro de 2009

As Moedas Virtuais Entre Pares e a Revolução Monetária

ARTIGOS ESPECIAIS

28/09 - 11:00

As Moedas Virtuais Entre Pares e a Revolução Monetária

28 de setembro de 2009 - No mundo digital, onde quer que haja um intermediário entre um recurso e o consumidor final, a internet está mostrando desnecessária a presença desse “homem-no-meio”. Vejam-se os exemplos do que ocorre na indústria de conteúdo de mídia (música, filmes), assim como na indústria da informação (jornalismo). Presença mais forte dessa implacável tendência para a eliminação do intermediário surge com o conceito de redes “peer-to-peer” (“par-a-par”, ou “entre-pares”), que veio a permitir que qualquer máquina na rede, em dado momento, possa atuar como servidor à disposição de um cliente (seu par). Com efeito, segundo a Wikipedia, peer-to-peer (abrev. “P2P”) é um termo que teve origem no conceito popular de desenho de aplicações entre-pares para computador, massificado pelos grandes sistemas distribuídos de compartilhamento de arquivos, tais como o Napster, o primeiro portal desse tipo criado no final dos anos 1990’s. Tamanho é o simbolismo de descentralização que traz consigo, o conceito tem inspirado novas estruturas e filosofias em outras áreas do relacionamento humano. Em certos contextos o termo é utilizado para se referir ao networking social igualitário que parece estar emergindo amplamente na sociedade contemporânea, e que é viabilizado pelas tecnologias da internet.

Desde a sua origem, a internet foi concebida como uma rede ponto-a-ponto consistindo de pares “iguais”, de modo que o transporte de dados entre pares poderia ser feito utilizando, em momentos distintos, diferentes conjuntos de recursos, estes permanecendo transparentes aos pontos extremos. Mais ainda, em sua evolução a web tem natureza essencialmente orgânica ao invés de centralizada. Daí, o termo P2P se refere a uma forma específica de dinâmica relacional, baseada na pressuposta equipotência de seus participantes, organizada através da cooperação livre de iguais com vistas ao desempenho de uma tarefa comum, para a criação de um bem comum, com formas de tomada de decisão e autonomia que são amplamente distribuídas na rede. A conotação ideológica parece inescapável. Segundo Michel Bauwens, autor do ensaio “P2P and Human Evolution: Peer to peer as the premise of a new mode of civilization” (“P2P e Evolução Humana: Peer to peer como a premissa de um novo modo de civilização”, 2005), trata-se de uma “forma de organização humana baseada-em-rede que se apóia na livre participação de parceiros equipotentes, engajados na produção de recursos comuns, sem recorrer à compensação monetária como o fator chave de motivação, e que não é organizada de acordo com métodos hierárquicos de comando e controle.”

A mera existência de uma rede de comunicações de amplo alcance e de característica essencialmente orgânica como a internet está trazendo mudanças profundas. Em seu livro “The Wealth of Networks – How Social Production Transforms Markets and Freedom” (“A Riqueza das Redes – Como a Produção Social Transforma os Mercados e a Liberdade”, Yale University Press, 2006), Yochai Benkler afirma que “possibilitadas pela mudança tecnológica, estamos começando a ver uma série de adaptações econômicas, sociais e culturais que tornam possível uma transformação radical de como construímos o ambiente de informações que ocupamos como indivíduos autônomos, cidadãos, e membros de grupos sociais e culturais. (…) A mudança trazida pelo ambiente de informações em rede é profunda. É estrutural. Vai aos próprios fundamentos de como mercados liberais e democracias liberais têm coevoluído por quase dois séculos.”

Em tempos de crise financeira global, de enfraquecimento do dólar, e de questionamentos sobre regulação do mercado financeiro, eis que surge o supra-sumo da descentralização financeira: a noção de “moeda peer to peer”, que, em se consolidando, poderia ser um forte indicador de que estaria por vir uma “revolução monetária global”. Em matéria intitulada “The Currency Revolution” (Wall Street Journal, 09/09/09), Andy Jordan chama à atenção para o fato de que em tempos como este em que as discussões inevitavelmente se voltam para moedas alternativas ou complementares, muitos dos envolvidos em redes sociais alimentam a esperança de que as moedas virtuais peer to peer tenham vindo para ficar. O fundador de uma rede social de viajantes aventureiros chamada Hub Culture, e autor do livro “Hub Culture: The Next Wave of Urban Consumers” (Wiley, 2002) seria o que se pode chamar de evangelizador das moedas peer to peer: “Você vai ver inexoravelmente, o movimento em direção às finanças peer to peer”, diz Stan Stalnaker. E vai mais além: “As pessoas negociarão individual e independentemente entre si, no mundo todo. Vai acontecer, não há como negar.”

Em parte para atender às necessidades dos membros de sua rede social Hub Culture, em sua maioria viajantes contumazes que se deparam frequentemente com a necessidade de comprar e vender moeda estrangeira, Stalnaker criou uma moeda digital chamada Ven, atrelada ao dólar, que permite que os membros da rede social Hub Culture negocie mercadorias e serviços assim como conhecimento. Tendo sido lançada em Julho de 2007, ven é uma moeda digital peer to peer com circulação tendo chegado à casa dos 700 mil vens em Julho último, segundo a DGC Magazine. A palavra “ven” tem sua origem na tradição budista, que lhe atribui o significado “compartilhamento que vem da doação”.

Uma contribuição de Stalnaker ao blog da Harvard Business School intitulada “Here Comes the P2P Economy” (“Aqui Vem a Economia P2P”, 26/02/08) já fazia a previsão: um choque como o que aconteceu com a mídia tem tudo para acometer também outras indústrias, algumas delas de forma mais rompedora. Aliás, já está sendo sentido nos serviços financeiros. O fenômeno do microcrédito iniciou o processo: o empréstimo de pequenas somas a grupos sociais carentes (e entre tais grupos) em economias mais pobres mostrou que os membros coletivamente acabaram garantindo o próprio retorno do empréstimo ao banco. “Combine isso com o poder de uma rede digital global, e um novo modelo de banco começa a tomar forma.”

Segundo Stalnaker, é aí que os sistemas financeiros P2P estão prontos para fazer com a indústria bancária o que aconteceu com a indústria de mídia. Já existe, inclusive, uma série de sítios que realizam o que se caracteriza como “banco peer to peer”: um sistema online que permite a seus membros individuais completarem transações financeiras entre si usando um processo no estilo leilão através do qual são feitas ofertas para uma quantia específica a uma dada taxa de juros, e aí os interessados têm a opção de procurar pela combinação quantia-taxa que está de acordo com suas necessidades. Embora tendo iniciado em economias subdesenvolvidas ou em desenvolvimento (África, México, etc.) alguns portais mais conhecidos já realizam operações de empréstimo peer to peer e microcrédito nos países desenvolvidos, incluindo Kiva.org, Proper.com, LendingClub.com, além de alguns “novatos” tais como Lubbus.com (Espanha), Loanio.com, PertuityDirect.com e Smava.pl (Polônia). “É apenas uma questão de tempo para que tais sistemas digitais eliminem a arbitragem realizada pelos grandes bancos”, continua Stalnaker.

Além disso, Stalnaker acredita que muito em breve serão usadas as chamadas “moedas pessoais” para fazer pagamento por serviços relacionados ao conhecimento propiciados por outros indivíduos, tais como a apresentação a pessoas ou grupos de pessoas e dicas de compra. Além de estarem sujeitas às mesmas flutuações e cotações determinadas pelo mercado, tais moedas terão seu valor atrelado à reputação e ao tamanho da rede (medido pelo status como especialista e pelo número de amigos), ao invés de expectativas de mercado e tamanho da economia. Embora pouco ortodoxa, a idéia de Stalnaker obteve destaque na lista das principais idéias revolucionárias para 2008 da Harvard Business Review, citada também na lista de 2009: “Ano passado Stan Stalnaker exuberantemente esboçou um futuro no qual comunidades P2P intercambiariam tudo desde energia elétrica a crédito de reputação pessoal” (“The 2009 HBR List of Breakthrough Ideas”, Lew McCreary, 28/01/09).

Em entrevista a Andy Jordan para a matéria do Wall Street Journal, Stalnaker diz que uma rede social é um lugar ideal para se começar uma moeda personalizada, pois tem confiança já embutida na infraestrutura. Com efeito, intangíveis tais como “confiança,” “reputação,” e até mesmo “atenção” passam naturalmente a fazer parte integrante dessas novas moedas. Como exemplo concreto, Jordan menciona a Seriosity, empresa co-fundada pelo Professor de Comunicação Social da Stanford University, Byron Reeves, especialista em respostas psicológicas à mídia interativa, que comercializa um produto chamado “Attent” que é adicionado ao Microsoft Outlook. O Attent utiliza uma moeda digital chamada “Serios,” que é anexada a mensagens eletrônicas (emails) para significar urgência. Cada empregado recebe uma cota, digamos semanal, de serios, e a cada mensagem a ser enviada o empregado associa seu “valor” (i.e., importância, urgência), podendo avaliar sua repercussão pelo número de serios que a mensagem de resposta lhe traz. Quando alguém deseja ganhar a atenção de seu chefe, o Attent descobre a “taxa aberta” do chefe de forma a indicar quantos serios serão necessários para ao menos garantir que a mensagem será lida. Além do mais, como cada usuário tem uma cota limitada de serios, o Attent cria um mercado para o intangível “atenção”. Como política de incentivo à produtividade, pode-se estabelecer que usuários têm a chance de “ganhar” serios uns dos outros realizando algo como concluir uma tarefa antes da data planejada, por exemplo.

Em meio a alguns exemplos bem sucedidos do bom funcionamento do conceito de moeda virtual (os “Linden dollars” do Second Life, e os e-Rewards do Upromise, por exemplo), das dificuldades do governo americano em manter o controle sobre as transações no portal de leilão eletrônico da eBay assim como de transações de parceiros da Amazon.com, e diante da fortíssima participação da Ásia na concretização das moedas virtuais – segundo matéria de Brenda Goh na Reuters, os asiáticos gastam cerca de US$5 bilhões ao ano em compras virtuais em websites como Ozone e Cyworld – resta saber se a idéia da moeda virtual peer to peer virá de fato a desbancar 800 anos de práticas financeiras centralizadoras.

(Ruy José Guerra Barretto de Queiroz, Professor Associado, Centro de Informática da UFPE)

Investimentos e Notícias (São Paulo), 28/09/2009, 11:00hs, http://investimentosenoticias.com.br/IN_News.aspx?Parms=2653374,408,100,1

Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online, Recife), 28/09/2009, 06:51hs, http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/artigos/2009/09/28/as_moedas_virtuais_entre_pares_e_a_revolucao_monetaria_54789.php



Nenhum comentário:

Postar um comentário